Sétima Trienal de Arquitectura de Lisboa

A política suja da areia manifesta-se através da sua extração, comércio e governação, impulsionando a degradação ambiental, economias ilícitas e o deslocamento social. À medida que a procura acelera com a expansão territorial e a urbanização especulativa em torno dos centros urbanos, o estatuto da areia como recurso contestado torna-se cada vez mais evidente, aprofundando o fosso entre os locais de extração e de acumulação.

Michaela Büsse

Poder Granular: A Política irregular da Areia

Grandes quantidades de areia foram e continuam a ser enviadas para Singapura, apesar de o Vietnam ter oficialmente proibido a exportação de areia em 2017.
Sa Đéc, Vietnam, dezembro de 2020.

A importância da areia

A areia, a seguir à água, é o segundo material mais utilizado no mundo. Todos os anos, cerca de 40 a 50 mil milhões de toneladas de areia são consumidas em todo o mundo.1 Este valor representa 79% de todos os agregados extraídos e comercializados, o que faz da areia a base literal da infra-estrutura humana mundial. A areia desempenha um papel vital na produção do vidro, aço e betão. A sílica, um dos minerais mais comuns encontrados na areia, é o principal componente dos chips de silício e, por isso, fundamental para o desenvolvimento das tecnologias digitais. Mas a areia é também crucial na criação e manutenção do próprio solo, o que a torna um elemento central nos processos de urbanização. As ilhas artificiais, as expansões de portos e os projectos de reposição de praias consomem grandes quantidades de areia. Enquanto alicerce das infra-estruturas urbanas, a areia está incorporada no próprio tecido da vida moderna. No entanto, a sua ubiquidade esconde a sua complexidade. Enquanto sedimento, a areia é fundamental para o funcionamento dos ecossistemas. A expansão e intensificação incessantes das cidades estão a privar os rios e as costas de sedimentos, esgotando a areia a um ritmo que excede largamente a sua capacidade natural de reposição.

A dragagem intensiva dos rios e dos fundos marinhos alterou profundamente os padrões naturais de sedimentação, quebrando o equilíbrio delicado que sustenta muitos ecossistemas. Os rios, que outrora transportavam areia das montanhas para o litoral, têm dificuldade em reabastecer as praias e os pântanos. Esta escassez de sedimentos tem consequências de larga escala. Sem depósitos de areia suficientes, as zonas costeiras ficam mais expostas à erosão, à subida do nível do mar e aos efeitos devastadores de fenómenos meteorológicos extremos. Em ecossistemas que já se encontram na linha da frente das alterações climáticas — como deltas, pântanos e estuários — o impacto da extracção de areia torna-se ainda mais severo. As regiões dos deltas, por exemplo, dependem de depósitos contínuos de sedimentos para contrariar o afundamento natural do solo. Quando a areia é removida a um ritmo superior ao da sua reposição, estas zonas ficam expostas à subsidência, em que a terra se afunda a um ritmo acelerado, o que aumenta o risco de inundações e contribui para a salinização das reservas de água doce. Muitos destes efeitos não são imediatos, podendo demorar anos ou mesmo décadas a manifestar-se, o que torna a sua monitorização e mitigação particularmente difíceis.

Os vestígios de um projeto de recuperação pausado criaram uma nova paisagem acidental.
Malaca, Malásia, janeiro de 2020.

As inúmeras marcas no chão indicam o fluxo constante de caminhões entregando areia para alimentar a nova terra.
Penang, Malásia, janeiro de 2020.

À medida que o consumo global de areia atinge níveis sem precedentes, tornam-se cada vez mais visíveis as consequências profundas e abrangentes da sua extracção.2 Diversas investigações jornalísticas e científicas alertam para a “tragédia iminente dos recursos comuns da areia,” salientando o impacto ambiental associado à dragagem e à extracção de areia, como a poluição, a perda de biodiversidade e a degradação dos solos, bem como as práticas ilegais no comércio da areia.3 A realidade do comércio de areia é simultaneamente suja e confusa, entrelaçada com dinâmicas políticas complexas, tanto a nível nacional como internacional. Em regiões como o Sudeste Asiático, a rápida urbanização e os investimentos em projectos de infra-estruturas de grande escala têm alimentado uma procura sem precedentes deste recurso essencial. Nestes contextos, a recuperação de terras ao mar tornou-se um ponto sensível, em que as práticas de extracção se cruzam com questões de soberania, sustento das populações e justiça ambiental, transformando a areia num recurso altamente procurado e disputado. Criar novo território para uns implica, muitas vezes, retirar terra e meios de subsistência a outros. A exploração da areia anda frequentemente de mãos dadas com a exploração laboral e manobras geopolíticas.

A escassez iminente de areia tem alimentado um mercado negro em expansão, dando origem às chamadas “máfias da areia” — redes criminosas que controlam a extracção e o comércio através da corrupção, intimidação e violência, contornando frequentemente as proibições nacionais de extracção e exportação.4  Em muitos casos, a areia torna-se uma questão de vida ou morte, tanto para quem a extrai como para quem procura impedir a sua extracção. Em todo o mundo, activistas e comunidades locais têm-se mobilizadocontra a extracção de areiae o aterro hidráulico, desafiando os discursos dominantes de desenvolvimento e progresso que tantas vezes servem para justificar adestruição ambiental. No entanto, estas iniciativas raramente são bem sucedidas, resultando, na melhor das hipóteses, em indemnizações pontuais às populações afectadas. Uma gestão transfronteiriça da areia exigiria o estabelecimento de normas internacionais, algo que tem sido reiteradamente defendido por investigadores e organizações.5 Ainda assim, controlar o fluxo natural de areia continua a ser uma tarefa quase impossível. 

Montes de areia remanescentes em Forest City, uma ilha recém-reclamada e cidade ecológica inteligente em Johor, Malásia.
Janeiro de 2020.

À medida que a areia deixa de ser apenas um sedimento para se tornar um recurso precioso, ganha um papel central nos ideais urbanos do desenvolvimento contemporâneo. Cidades como o Dubai e Singapura são exemplos paradigmáticos de como as ambições arquitectónicas se erguem sobre grandes quantidades de areia importada. Territórios construídos de raiz, arranha-céus imponentes e infra-estruturas extensas são testemunhos do potencial transformador da areia. No entanto, estas paisagens urbanas são assombradas pela sua própria materialidade: cada grão de areia é uma testemunha silenciosa das perturbações ecológicas e sociais que tornaram possível a sua deslocação. A areia que compõe estas estruturas transporta consigo os sinais persistentes da degradação ambiental, do trabalho deslocado e da exploração que lhe estão na origem.6 Deste modo, a areia é simultaneamente arquitecta e espectro das ambições desenfreadas da modernidade, deixando-nos perante as sombras lançadas pelas nossas próprias construções. 

A transformação em recurso

O percurso da areia tem início nas profundezas da crosta terrestre, onde processos geológicos que se desenrolam ao longo de milénios acabam por dar origem à sua forma. São necessárias centenas de anos para que o cume de uma montanha sofra erosão e as partículas resultantes sejam transportadas pelo vento e pelos rios, até chegarem às praias ou aos leitos fluviais sob a forma de areia. Se não for extraída, a areia continuaria a decompor-se, afundando-se progressivamente na Terra. O geógrafo Michael Welland descreve uma erupção vulcânica como o nascimento de um grão de areia, uma metáfora poética que, no entanto, ignora a realidade de que a maior parte da areia é extraída do ciclo geológico através de práticas como a dragagem de rios e fundos marinhos.7 A circulação da areia não é um processo unidirecional; pelo contrário, a areia é continuamente erodida, transportada e depositada. As zonas costeiras, os deltas fluviais e os ambientes subaquáticos funcionam como depósitos temporários, onde a areia permanece antes de voltar a ser movimentada pelas forças naturais. Este ciclo garante o equilíbrio dos ecossistemas, distribuindo os sedimentos por diferentes paisagens. No entanto, as actividades humanas como a extracção de areia, a construção de barragens e o desenvolvimento urbano nas zonas costeiras interferem nesse equilíbrio, reduzindo o fluxo de sedimentos e provocando uma maior erosão, bem como a destruição de habitats naturais.

Esquerda: Régua de areia nos laboratórios da Deltares, o Instituto de Pesquisa do Delta Holandês em Delft, novembro de 2020. A areia é definida pelo tamanho de seus grãos.
Direita: A areia é classificada por uma correia transportadora antes de ser transferida para caminhões para distribuição em canteiros de obras locais. Clark, Filipinas, novembro de 2018.

A areia é classificada por uma correia transportadora antes de ser transferida para caminhões para distribuição em canteiros de obras locais.
Clark, Filipinas, novembro de 2018.

Uma instalação improvisada de triagem de areia. Aqui, a areia é retirada ilegalmente da praia, ensacada e rotulada como açúcar antes de ser coletada por barcos.
San Narciso, Filipinas, novembro de 2018.

Nem toda a areia é adequada para construção; apenas a areia marinha e fluvial, cujos grãos angulosos são moldados pelo movimento da água, proporcionam a aderência e estabilidade necessárias para obras de construção e aterros. Em contrapartida, a areia do deserto é moldada principalmente pelo vento, o que resulta em grãos arredondados com um núcleo endurecido, tornando-a inadequada para a construção. Este paradoxo revelou-se de forma emblemática no Dubai que, apesar da sua abundância de areia, teve de a importar da Austrália para construir ilhas artificiais em forma de palmeira. Face à crescente escassez, investigadores e engenheiros têm vindo a explorar formas de tornar a areia do deserto utilizável como material de construção. Em 2018, por exemplo, uma start-up chamada Finite despertou a atenção ao desenvolver um material de construção biodegradável com base em areia do deserto.8 Paralelamente, o governo de Singapura tem vindo a testar um material de construção produzido a partir de resíduos processados, conhecido como NEWSand.9 Apesar destas inovações, a aplicação em grande escala de materiais alternativos continua a ser incerta. 

A natureza granular da areia facilita o seu manuseamento, quer seja embalada em sacos, carregada em camiões, transportada por condutas ou enviada por navio através dos oceanos. Sendo um chamado “recurso comum” (common pool resource), a areia é frequentemente considerada um bem “gratuito”, o que contribui para o seu baixo custo de extracção.10 Na prática, os únicos custos associados à areia dizem respeito à sua aquisição e transporte, razão pela qual tende a ser extraída perto do local onde vai ser utilizada. A areia pode ser extraída de poços a céu aberto, recolhida de praias ou dragada de leitos fluviais, lagos e fundos marinhos. Definida apenas pela dimensão dos seus grãos, a areia é composta por uma mistura de rochas, minerais, conchas e resíduos vegetais. O quartzo é o componente mais comum, representando cerca de 70% das areias naturais.11 No entanto, do ponto de vista técnico, qualquer partícula com um tamanho entre 0,0625 e 2 milímetros pode ser classificada como areia; as partículas mais pequenas são designadas de silte, enquanto as maiores são consideradas gravilha.12

O rio Mekong foi intensamente dragado por décadas, levando à erosão e ao rebaixamento do solo.
Rio Mekong, próximo a Sa Đéc, Vietnã, dezembro de 2019.

A dimensão é o principal parâmetro que define a areia, justamente pelas suas propriedades físicas. Enquanto material granular, o seu comportamento depende da interacção entre os grãos individuais e o ambiente que os envolve.13No estado seco, e consoante a distribuição de energia, a areia pode actuar como um fluido ou como um sólido; pode obstruir passagens ou liquefazer-se, sendo este último fenómeno particularmente comum durante os sismos. As vibrações reorganizam os grãos, transformando um terreno aparentemente estável em verdadeiros buracos. Quando húmida, a areia tende a comportar-se como um sólido; mas se estiver demasiado saturada, passa a agir como um fluido. Em determinadas circunstâncias, como em ambientes sujeitos a ventos fortes, a areia pode até assumir comportamentos semelhantes aos de um gás, dispersando-se pelo ar e saltando caoticamente. Assim, a areia apresenta um comportamento desordenado a nível granular, mas, em grande quantidade, dá origem a fenómenos como avalanches, segregação e liquefação.14 A física dos materiais granulares continua a surpreender, sendo muitas vezes considerada contra-intuitiva, não existindo um modelo abrangente capaz de explicar plenamente o seu comportamento complexo e multifásico.

Apesar de ser um dos materiais de construção mais utilizados no mundo, a física granular da areia coloca desafios à sua medição precisa e, por conseguinte, à sua gestão eficaz. É precisamente a granularidade da areia que permite a manipulação em larga escala, mas que, ao mesmo tempo, complica a sua regulação. Esta contradição oferece uma perspectiva privilegiada para analisar a política em torno da areia, em que forças geológicas e a intervenção humana estão em constante tensão. A natureza granular da areia permite-lhe ser facilmente extraída, transportada, moldada, misturada e transformada em blocos de construção versáteis, seja para as fundações das cidades ou para a tecnologia de ponta. No entanto, é essa mesma granularidade que a torna um bem intrinsecamente instável, em constante mudança, tanto física como em termos de regulamentação. Assim, a areia actua simultaneamente como agente e suporte de transformação ambiental, esbatendo a fronteira entre matéria-prima e infra-estrutura.

Trabalhadores de lastro em ação na piscina.
Fonte: Henry Mayhew, London Labour and the London Poor, Vol. 3 (Londres, 1851), p. 277.

Areia (e) Política

No século XVIII, os avanços no transporte marítimo, na construção de barragens e no endireitamento dos rios para facilitar a navegação levaram a um estudo mais aprofundado do comportamento da areia. Engenheiros e cientistas naturais passaram a interessar-se cada vez mais em compreender como a areia se movia e assentava, uma vez que estas dinâmicas influenciam directamentre a estabilidade dos cursos de água, a durabilidade das barragens e a segurança das rotas de navegação. Ao observarem os efeitos da erosão, da sedimentação e da deslocação dos bancos de areia, procuraram formas de controlar os movimentos imprevisíveis da areia, o que permitiu uma melhor gestão das correntes fluviais, a prevenção de obstruções e a manutenção de canais navegáveis. Este período marcou um passo decisivo rumo à engenharia hidráulica e à sedimentologia modernas, pois tornou-se claro que o comportamento da areia era essencial para dar resposta às exigências crescentes do transporte industrial e das infra-estruturas.

Como observa Laleh Khalili, só recentemente é que a areia passou a ser reconhecida como um bem de consumo por direito próprio.15 Historicamente, o comércio de areia era um resultado acidental do transporte marítimo, já que os navios utilizavam frequentemente areia ou gravilha como lastro. Este lastro era carregado num porto e descarregado noutro, deixando depósitos de agregados nos cais de todo o mundo. Inicialmente extraídos para apoiar o comércio marítimo, estes materiais passaram a ser aproveitados, já no século XIX, na construção de edifícios e na pavimentação de estradas. O surgimento do transporte marítimo em contentores, em meados do século XX, desencadeou uma expansão significativa da indústria de dragagem; os navios, cada vez maiores e mais pesados, exigiam canais mais profundos, originando grandes quantidades de areia dragada que podia ser reutilizada.16 Ainda hoje, a manutenção contínua dos canais de navegação gera um fluxo constante de material granular, frequentemente desviado para projectos de grande escala de aterros hidráulicos.

Mapa da erosão costeira comparado com a chamada "linha costeira de referência" (basiskustlijn) ao redor do porto de Rotterdam.
Fonte: Ministério da Infraestrutura e Gestão Hídrica dos Países Baixos.

O desenvolvimento de uma indústria especializada em dragagem e aterros hidráulicos foi liderado pelos Países Baixos, cuja longa tradição em engenharia costeira impulsionou inovações na extracção de areia, transporte e modulação da paisagem. Perante o recuo progressivo da linha costeira, em 1990, os Países Baixos tomaram uma decisão histórica ao estabelecer uma posição fixa da linha de costa.17 Manter esta fronteira requer a extracção anual de cerca de doze milhões de toneladas de areia do Mar do Norte, que é depois estrategicamente depositada ao longo da costa para contrariar a erosão. Embora os engenheiros holandeses estejam a explorar métodos mais sustentáveis de reposição do litoral, o esforço para manter a linha costeira do país continua a ser uma tarefa extremamente exigente em termos de recursos humanos e financeiros. A experiência dos Países Baixos em dragagem e recuperação costeira não só é essencial para a sua própria protecção territorial, como também consolidou a sua posição como referência mundial em engenharia costeira.

Os projectos de reconversão costeira na Europa têm, sobretudo, como objectivo a estabilização do litoral e a protecção face à subida do nível do mar. Contudo, países como a China e Singapura têm apostado numa escala muito mais ambiciosa de aterros hidráulicos, alterando profundamente as suas linhas costeiras e criando vastas extensões de território novo para fins urbanos, industriais e militares. No caso da China, por exemplo, essa estratégia tem passado pela construção deliberada de ilhas artificiais no Mar do Sul da China, entre o continente e o arquipélago de Apratly, uma região disputada também pelo Vietname, Filipinas e Malásia. Estas ilhas artificiais não servem apenas como instrumento de afirmação geopolítica, mas também permitem à China consolidar posições estratégicas numa zona crucial para o comércio internacional. Já Singapura, ao longo dos últimos cinquenta anos, aumentou em cerca de 25%  a sua superfície terrestre, num processo que acompanhou a sua transformação num Estado independente e numa das economias mais dinâmicas do Sudeste Asiático.18 Contudo, esta expansão territorial não tem sido isenta de controvérsia: tensões fronteiriças com a Malásia e a Indonésia, aliadas a práticas duvidosas na aquisição de areia, tornaram o comércio deste recurso e os projectos de aterro hidráulico temas particularmente sensíveis na região.19 A crescente escassez de areia elevou a sua importância a uma questão estratégica para Singapura, levando o país a criar reservas de areia como forma de garantir a continuidade de futuras obras de expansão territorial e de infra-estruturas essenciais.

Para evitar a escassez de areia, Singapura mantém grandes reservatórios de areia.
Singapura, janeiro de 2020.

Khalili descreve a reconversão territorial como uma forma moderna de “pirataria”, chamando a atenção para o facto de a areia ser frequentemente extraída das chamadas “zonas de empréstimo”, muitas vezes em condições de legalidade duvidosa.20 Estas áreas podem situar-se em leitos de rios, zonas costeiras ou fundos marinhos offshore — locais onde a areia se acumula naturalmente através de processos geológicos e hidrológicos — e que, em teoria, estão sob supervisão de entidades reguladoras. Na prática, porém, a extracção dá-se muitas vezes com fiscalização limitada ou mesmo em violação das normas existentes. Embora o termo “reconversão” sugira a legítima recuperação de terra ao mar (o que raramente corresponde à realidade dos factos), a expressão “zona de empréstimo” contribui ainda mais para ocultar o carácter altamente extractivo destas práticas. Trata-se, na verdade, de uma tecnologia política que visa, acima de tudo, transformar a natureza em mercadoria, ao serviço de interesses económicos e políticos. Singapura, por exemplo, tem obtido grande parte da sua areia através de países vizinhos, recorrendo a esquemas de aquisição muitas vezes diluídos por redes de subcontratação. Este mecanismo permite-lhe distanciar-se das consequências ambientais e sociais provocadas pelas suas acções.21 À medida que o território e a economia de Singapura continuam a crescer, os países fornecedores de areia enfrentam impactos ambientais e sociais severos, bem como um aumento da dependência económica.

Quando a areia é desenterrada e deslocada, a sua natureza jurídica e económica também se altera. Aquilo que, num local, é extraído como um recurso barato, noutro é convertido em terra firme e rapidamente naturalizado como solo e território. Milica Topalović descreve esta transformação como uma espécie de “alquimia”.22 O que importa não é a origem da areia, mas o local onde ela se fixa: quem exerce soberania sobre esse novo território.23 O facto de a areia ser essencial a certos ecossistemas e formas de vida — de ser fundamental na criação de lugares e, por isso mesmo, de valor incalculável — é frequentemente ignorado neste processo. Esta “visão extractiva” não só transforma a areia num mero recurso, como também desvaloriza outras formas de relação com ela.24 Os recursos, em geral, e a areia, em particular, são colocados num continuum que oscila entre uma “fonte passada” e um “produto futuro”.25 Transformar areia em solo urbano ou infra-estruturas implica mais do que uma simples transformação física da matéria. É, acima de tudo, um acto de criação de valor económico, perante o qual todas as outras formas de atribuição de significado são sistematicamente desvalorizadas.

Poder granular

Areia, solo, território e formas de governação convergem de forma visível na prática da recuperação de terras. O que, à partida, parece ser uma fórmula de sucesso pode rapidamente tornar-se fonte de instabilidade, sobretudo quando o fornecimento de areia começa a escassear. Tradicionalmente vista como um recurso inesgotável, a areia tende a ser negligenciada nos enquadramentos regulatórios, por não ser considerada suficientemente valiosa para justificar a supervisão. No entanto, como acontece com tantos outros recursos naturais, a sua importância só é plenamente reconhecida quando a sua ausência já causa impactos tangíveis. A erosão das margens fluviais ou zonas costeiras, o aumento das inundações, ou ainda a sobreposição das reivindicações territoriais entre Estados revelam o carácter profundamente político da areia. À medida que os grãos de areia se acumulam, se dispersam ou se solidificam em novos territórios, os seus efeitos repercutem-se por uma série de sistemas interligados — económicos, ambientais e sociais.

Desde a sua origem geológica até ao papel fundamental que desempenha nas infra-estruturas urbanas, o percurso da areia revela uma verdade essencial: tanto a areia como, por extensão, a própria terra, são intrinsecamente instáveis. Esta instabilidade não se manifesta apenas no momento da extracção e transformação, mas também através da sua inevitável erosão, que desafia todos os esforços de controlo. Composta por fragmentos de rocha, conchas e matéria orgânica, a areia está sujeita a processos de decomposição natural, o que torna a sua estabilização uma tarefa árdua e, por vezes, inglória. A terra recuperada, em particular, é extremamente vulnerável à erosão, exigindo reposições constantes para evitar o colapso, um processo que, por sua vez, alimenta ainda mais a procura por areia. Porém, cada extracção e transformação de areia, seja em projectos de construção, reabilitação de praias ou desenvolvimento de infra-estruturas, contribui para destabilizar ainda mais este frágil equilíbrio. 

A política irregular em torno da areia revela, em última instância, questões mais amplas sobre controlo, dependência e influência, moldadas pela sua disponibilidade, escassez e, muitas vezes, pela ausência de regulação eficaz. As consequências do movimento da areia são reais, viscerais e afectam as pessoas e as comunidades de forma tangível. A natureza complexa da areia reflecte as dificuldades de a governar enquanto recurso, em que a sua essência granular se torna um ponto de convergência de forças políticas, económicas e ambientais. Num mundo em que as fronteiras naturais e geopolíticas se tornam cada vez mais difusas, a própria matéria de que se faz o território transforma-se numa fronteira instável. Em toda a sua complexidade granular, a areia é um testemunho da natureza efémera das ambições humanas — recorda insistentemente que mesmo os alicerces que julgamos mais sólidos podem, e irão, sofrer erosão.

Notas de Rodapé

  1. United Nations Environment Programme, “Sand and Sustainability: Finding New Solutions for Environmental Governance of Global Sand Resources: Synthesis for Policy Makers” (Geneva: United Nations Environment Programme, 2019).
  2. Orrin H. Pilkey et al., Vanishing Sands: Losing Beaches to Mining (Durham, NC: Duke University Press, 2022).
  3. Environmental Reporting Collective, “Beneath the Sands,” https://www.beneaththesands.earth/, 2023; Vince Beiser, The World in a Grain: The Story of Sand and How It Transformed Civilization (Riverhead Books, 2018);  United Nations Environment Programme, “Sand and Sustainability”; United Nations Environment Programme, “Sand and Sustainability: 10 Strategic Recommendations to Avert a Crisis” (Geneva; United Nations Environment Programme, 2022); Aurora Torres et al., “A Looming Tragedy of the Sand Commons,” Science 357, no. 6355 (2017); Mette Bendixen et al., “Time Is Running out for Sand,” Nature 571, no. 7763 (Julho de 2019): 29–31; Vanessa Lamb, Melissa Marschke, e Jonathan Rigg, “Trading Sand, Undermining Lives: Omitted Livelihoods in the Global Trade in Sand,” Annals of the American Association of Geographers 109, no. 5 (2019): 1511-1528; Christina Larson, “Asia’s Hunger for Sand Takes Toll on Ecology,” Science 359, no. 6379 (2 de Março de 2018): 964–65; Nicholas Magliocca et al., “Comparative Analysis of Illicit Supply Network Structure and Operations: Cocaine, Wildlife, and Sand,” Journal of Illicit Economies and Development 3, no. 1 (4 de Outubro de 2021): 50–73; Global Witness, “Shifting Sands: How Singapore’s Demand for Cambodian Sand Threatens Ecosystems and Undermines Good Governance” (London: Global Witness, 2010).
  4. Arpita Bisht, “Conceptualizing Sand Extractivism: Deconstructing an Emerging Resource Frontier,” The Extractive Industries and Society 8, no. 2 (Junho de 2021): 100904; Lamb, Marschke, e Rigg, “Trading Sand, Undermining Lives”; Global Witness, “Shifting Sands.”
  5. Bisht, “Sand Futures”; Michelle Ann Miller, “A Transboundary Political Ecology of Volcanic Sand Mining,” Annals of the American Association of Geographers 112, no. 1 (2 de Janeiro de 2022): 78–96; United Nations Environment Programme, “Sand and Sustainability: 10 Strategic Recommendations to Avert a Crisis.”
  6. Jacques Derrida, Spectres de Marx (Paris: Galilée, 1993).
  7. Michael Welland, Sand: The Never-Ending Story, 1st Edition (University of California Press, 2009).
  8. India Block, “Desert Sand Could Offer Low-Carbon Concrete Alternative,” Dezeen, 24 de março de 2018, https://www.dezeen.com/2018/03/24/desert-sand-could-offer-low-carbon-concrete-alternative/.
  9. Timothy Goh, “Processed Waste Known as NEWSand May Be Used as Construction Materials Here,” Straits Times, 25 de Novembro de 2019, https://www.straitstimes.com/singapore/processed-waste-known-as-newsand-may-be-used-as-construction-materials-here.
  10. Lamb, Marschke, e Rigg, “Trading Sand, Undermining Lives”; Torres et al., “A Looming Tragedy of the Sand Commons.”
  11. Welland, Sand, 4.
  12. Chester K. Wentworth, “A Scale of Grade and Class Terms for Clastic Sediments,” The Journal of Geology 30, no. 5 (1922): 377–92.
  13. Bruno Andreotti, Yoel Forterre, e Olivier Pouliquen, Granular Media: Between Fluid and Solid (Cambridge: Cambridge University Press, 2013), 5.
  14. Andreotti, Forterre, e Pouliquen, Granular Media, 1.
  15. Laleh Khalili, “A World Built on Sand and Oil,” Lapham’s Quarterly, 13 de Maio de  2019, https://www.laphamsquarterly.org/trade/world-built-sand-and-oil.
  16. Ashley Carse e Joshua A. Lewis, “New Horizons for Dredging Research: The Ecology and Politics of Harbor Deepening in the Southeastern United States,” WIREs Water 7, no. 6 (Novembro de  2020): e1485.
  17. Hillen Roeland e Roelse Piet, “Dynamic Preservation of the Coastline in the Netherlands,” Journal of Coastal Conservation 1, no. 1 (1995): 17–28.
  18. Michaela Büsse, “Reclaiming Nature and Identity: Extractive Legacies in Singapore Development History,” em Robert Zhao Renhui: Seeing Forest, vol. 2, eds. Anna-Sophie Springer e Etienne Turpin (Berlin/Singapore: K. Verlag and Singapore Art Museum, brevemente 2025).
  19. Joshua Cameroff, “Built on Sand: Singapore and the New State of Risk,” Harvard Design Magazine 39, Inverno 2014.
  20. Khalili, “A World Built on Sand and Oil.”
  21. Global Witness, “Shifting Sands.”
  22. Milica Topalović, “Constructed Land: Singapore in the Century of Flattening,” em Constructed Land: Singapore 1924-2012 (Zurich: ETH Zurich DArch and Future Cities Laboratory, 2014), 56.
  23. Tania Murray Li, “What Is Land? Assembling a Resource for Global Investment,” Transactions of the Institute of British Geographers 39, no. 4 (Outubro 2014): 589–602.
  24. Macarena Gómez-Barris, The Extractive Zone: Social Ecologies and Decolonial Perspectives (Durham, NC: Duke University Press, 2017).
  25. Mandana E. Limbert e Elizabeth Emma Ferry, Timely Assets: The Politics of Resources and Their Temporalities (Santa Fe: SAR Press, 2009), 6.

Michaela Büsse

Teórica da cultura e do design, investiga especulações ambientais e configurações materiais e territoriais emergentes no contexto da urbanização planetária e da crise climática. Realizou várias curtas-metragens, curou exposições e publicou extensivamente sobre a relação recursiva entre tecnologias e ambientes. Michaela é atualmente investigadora de pós-doutoramento na TU Dresden e ocupou anteriormente cargos na Universidade Humboldt de Berlim, na Academia de Arte e Design de Basileia, na Universidade de Artes de Zurique, bem como bolsas de investigação no Instituto de Investigação para a Sustentabilidade / Centro Helmholtz de Geociências (GFZ), no Goethe-Institut de Quioto, na TU Delft, na NTU / Centro de Arte Contemporânea de Singapura, no Museu de Arte Contemporânea e Design de Manila e no Instituto Strelka de Media, Design e Arquitetura.